Por Audaci Jr
O quadrinhista Étienne Davodeau não sabe muito sobre o mundo do vinho. Richard Leroy é vinicultor e quase nunca leu quadrinhos.
Durante mais de um ano, Étienne foi trabalhar nos vinhedos e na adega de Richard, que, em troca, mergulhou nas páginas das HQs e na vida profissional do autor.
Davodeau afirma que existem tantas maneiras de fazer um livro quantas de produzir vinho. Ele constata que ambos têm o poder, necessário e precioso, de aproximar os seres humanos.
Vinhos e quadrinhos. O máximo que se pode imaginar a princípio é uma prazerosa leitura acompanhada da degustação de uma taça de uma boa safra, tinto ou branco.
Uma proposta inusitada do quadrinhista Davodeau ao vinicultor Leroy resulta em uma documentação com muitas surpresas, incluindo a maior delas: que o processo de cultivo nos vinhedos tem muito em comum com o de produção de uma história em quadrinhos.
A experiência é concebida de forma orgânica. Muitas características semelhantes nas ações são percebidas por Leroy, que topa ser personagem do álbum, mas sempre está com a cabeça na poda da sua plantação.
O leitor pode até lembrar-se de imediato do ótimo Sideways (2004), filme de Alexander Payne com Paul Giamatti (de Anti-herói Americano), mas as semelhanças ficam apenas na degustação e visitação de vinhedos. O “drama” aqui é bem mais tranquilo. Isso também não indica que seja menos prazeroso.
É apresentado o cultivo das videiras baseado na biodinâmica, processo adotado por Leroy em que nos cuidados com o solo, como a adubação, não são utilizados produtos químicos. E é mostrado que o procedimento é tão subjetivo quanto “gostar” ou “apreciar” a arte de uma HQ.
Entre o controle do crescimento das videiras, a avaliação de barris para a futura fermentação, o repouso, engarrafamento, degustação, maturação e visita de críticos de outras partes do mundo, vai sendo mostrado também o processo de fabricação de um álbum europeu.
Perfeccionista, Davodeau acompanha o demorado e meticuloso processo de verificar e corrigir erros dos testes de impressão da capa e os cadernos da edição. Os personagens também visitam uma reunião editorial. Todos se debruçam como urubus na carniça quando chegam novos originais de Jean-Pierre Gibrat.
Gibrat, por sinal, é um dos artistas que recebe a visita da dupla. Eles também batem à porta Marc-Antoine Mathieu e Emmanuel Guibert, este último autor de A guerra de Alan e O fotógrafo, ambos lançados no Brasil pela Zarabatana e Conrad, respectivamente.
Dentre as visitas a eventos sobre quadrinhos estão retratados os festivais Quai-des-Bulles (o segundo maior da França, depois de Angoulême) e de Bastia, além da exposição de Moebius na Fundação Cartier de Arte Contemporânea, em Paris.
Interessante frisar que, no seu processo de conhecimento, o vinicultor não gosta da arte de Moebius, definido como um “Mozart e Jimi Hendrix ao mesmo tempo” na visita a Jean-Pierre Gibrat. Assim como o autor não consegue perceber as diferenças peculiares de um vinho para o outro, Leroy também se permite ser sincero no processo de conhecimento.
A bela arte em aguada impressiona pelos detalhes. Sua capacidade narrativa vai além de meramente “documentar” os acontecimentos.
Por meio dos relatos das leituras do vinicultor, Davodeau dramatiza suas leituras no leito da cama, onde pode dormir sobre um encadernado de Watchmen, “uma obra sutil e complexa sobre a mitologia dos Estados Unidos”, segundo a ótica do quadrinhista francês, ou obter de imediato uma explicação desenhada por Lewis Trondheim (de Gênesis apocalípticos + Os inefáveis) sobre por que ele se retrata com um bico nas suas HQs.
Até o papel do resenhista é abordado na obra, em ambos os lados. O vinho também é alvo de modismos e avaliações da imprensa. Davodeau atenta que as HQs são resenhadas, mas “a verdadeira crítica permanece muito confidencial”. Fica a dica.
O único deslize na edição fica por conta de não traduzir as obras que já foram lançadas no Brasil, a exemplo do já citado e crucial O fotógrafo (publicado em três volumes – veja as resenhas aqui: 1, 2 e 3). Esse trabalho extra faria com que o leitor menos atento aos títulos originais se interessasse em procurar os álbuns para enriquecer ainda mais o relato de Davodeau.
Dentre as obras não traduzidas no decorrer da HQ e no final (com uma lista de bebidas e quadrinhos lidos durante a experiência) estão o também já citado A guerra de Alan, de Guibert, Palestina – Uma nação ocupada (Conrad), de Joe Sacco, Morango e chocolate (Casa 21), de Aurélia Aurita, O Espinafre de Yukiko (Conrad), de Frédéric Boilet, Era a guerra de trincheiras (Nemo), de Jacques Tardi, Estigmas (Conrad), de Lorenzo Mattotti e Claudio Piersanti, e até Calvin e Haroldo (Conrad), de Bill Watterson.
Tirando isso, o trabalho da WMF Martins Fontes está à altura, com uma boa impressão em papel pólen, capa cartonada (sem orelhas) e formato 19,50 x 26,50 cm.
Primeiro trabalho de Étienne Davodeau no Brasil, a qualidade de Os ignorantes pode servir de “cartão de visitas” para novos álbuns brasileiros do autor francês, como Lulu, femme nue e Le chien qui louche.
Uma história que irá abrir a mente e o paladar do leitor pela curiosidade de não fazer mais parte da ignorância de apreciar um bom vinho ou virar a noite debruçado sobre as páginas de uma história em quadrinhos. O cardápio está sugerido em Os ignorantes, para consumir sem tanta moderação assim.
Título: Os ignorantes
Autores: Étienne Davodeau (roteiro e desenhos)
272 páginas, formato 19,50 x 26,50 cm
R$ 49,90
Previsão de chegada: 13.06.2014
Comic House
Av. Nego, 255, Tambaú (João Pessoa-PB)
Telefone:(83) 3227 0656
E-mail:vendas@comichouse.com.br
Twitter: @Comic_House
(Publicado originalmente no site Universo Hq no dia 06 de junho de 2014)
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