Friday, April 4, 2014

Tiki, de Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo




Relatos de escravização indígena, desrespeito ao meio ambiente, genocídio…
No começo dos anos 70 a Rodovia Transamazônica prometia um futuro brilhante para o país.
E naqueles tempos, onde muitos ainda acreditavam que aquilo seria uma “revolução”, um governo totalitário impôs a ideia de progresso e modernidade.
Um período onde poucos tinham coragem de contestar.
Quatro décadas depois de sua inauguração em 1972, finalmente começam a serem discutidas de maneira séria as consequências que uma obra até hoje inacabada causou aos povos indígenas da região.
Em 1976, quando muitos ainda tinham medo de falar, dois italianos, às margens do mar da Ligúria, atentos ao que acontecia do outro lado do mundo, criaram um pequeno indiozinho.
Um jovem índio Carajá chamado Tiki.
Esse valente guerreiro viu toda sua aldeia ser dizimada pelos “pássaros brilhantes” – os aviões que jogavam, indiscriminadamente, suas bombas sobre a floresta.
Tiki – O Menino Guerreiro é a história de vingança de um jovem índio sem povo, uma parábola fantástica da obstinação de um guerreiro munido apenas de sua coragem contra a devastadora tecnologia militar. Uma história sobre a vida e a morte num tempo em que culturas milenares eram – e infelizmente ainda são – sistematicamente dizimadas em nome do progresso.
A bela e contundente obra de Giancarlo Berardi (roteiro) e Ivo Milazzo (arte) foi publicada originalmente em 1976 no Il Giornalino e ganhou a Europa.
Com uma visão surpreendentemente precisa de uma situação que horrorizou o mundo e que até hoje permanece impune, os dois italianos criaram um dos brasileiros mais legítimos e originais dos quadrinhos mundiais.
Inexplicavelmente, Tiki nunca havia sido publicado no Brasil.
Quase quarenta anos depois de sua publicação original, Tiki – O Menino Guerreiro finalmente ganha uma edição brasileira.
Dividida em capítulos, a epopeia do nosso herói apresenta as seguintes histórias: Tiki, o Menino GuerreiroO Dia dos Pássaros BrilhantesPetima, a Flor da FlorestaMacacos BrancosA Perseguição; e Um Pequeno Grande Amigo.
Tiki – O Menino Guerreiro (106 páginas, P&B, formato 22 x 32 cm, preço sugerido de R$ 36,00) é um lançamento da Editora Quadro a Quadro.
Com a publicação da obra, o pequeno índio Carajá, finalmente, está em casa!


Título: Tiki – O Menino Guerreiro
Autores: Giancarlo Berardi (roteiro) e Ivo Milazzo (arte)
106 páginas, P&B, formato 22 x 32 cm
Preço R$ 36,00

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                            (Publicado originalmente no site Quadro a Quadro no dia 17 de outubro de 2013)

Thursday, April 3, 2014

Peter Pan, Régis Loisel


Nas ruas da suja e cruel Londres de fins do Século 19, um jovem luta para sobreviver, trilhando um perigoso caminho entre a terrível realidade e a desafiadora fantasia.
Transportado para uma ilha fantástica, povoada por sátiros, centauros, sereias e fadas, os perigos não irão diminuir, seja nos ataques de piratas, seja na ameaça dos medos e traumas pessoais.
O leitor que viveu a realidade dos anos 1980 pode recordar o habitual garimpo em bancas de jornais atrás de quadrinhos diferentes dos super-heróis.
Um dos oásis da produção europeia brotava da revista mix Animal, da VHD Diffusion, na qual, dentre outras figuras do underground, era publicada as aventuras de Peter Punk, criação do espanhol Max (pseudônimo de Francesc Capdevila) que fazia uma paródia da famosa adaptação do Peter Pan pela Disney.
O personagem criado pelo dramaturgo britânico J. M. Barrie tem uma nova leitura nas mãos do francês Loisel. Não tão hardcore como a de Max, mas igualmente interessante e com um quê realista. Não é casualidade que nos créditos esteja acrescentado o advérbio “muito” antes de “livremente inspirado…”
O volume reúne os dois primeiros álbuns (de um total de seis, produzidos entre 1990 e 2004) da série vencedora do prestigiado Grand Prix do Festival de Angoulême, na França, em 2003, e que teve mais de um milhão de exemplares vendidos na Europa.
Totalmente diferente da candura da versão animada, o garoto que não queria crescer de Loisel não tem pressa de zarpar para a Terra do Nunca. Na primeira parte, intitulada Londres, o leitor é apresentado a uma capital britânica fria e suja, em 1887, tão deprimente quanto um conto de Máximo Gorki ou saída de uma história de Charles Dickens.
Em um universo marginalizado, o mais perto de um conto de fadas que se pode chegar é nas histórias que o protagonista maltrapilho conta aos seus amigos, um bando de órfãos. Ao contrário de seus contos escapistas de mães carinhosas, Peter reluta em voltar para casa, onde encontrará sua mãe alcoólatra.
Quando Loisel apresenta a sequência de humilhação em um dos buracos londrinos que eram apelidados de bar, garante ao leitor que não sente nenhuma pena do personagem, que também não é um modelo de herói. Ele é irresponsável, vaidoso e pretensioso.
É um mundo cruel e miserável, cheio de violência e cinismo, com prostitutas, mendigos, bêbados e estupradores nas bordas.
Retirando todos os elementos presentes na obra original, como Wendy e a busca pela própria sombra, a fantasia se faz presente com a presença de uma sexy e diferente fada Sininho.
Mesmo sendo transferidos para uma realidade mais fantástica na segunda parte, Opikanoba, quando Peter vai parar numa ilha povoada por sátiros, centauros, elfos, gnomos, sereias, fadas, índios e, logicamente, piratas.
A figura do Capitão Gancho feita pelo quadrinhista também tem suas particularidades. O vilão não suporta ver o próprio sangue e tem uma admiração pela personalidade de Peter Pan.
Este capítulo tem um contraponto bem definido em relação ao primeiro, não apenas pela sobriedade “pé no chão” nas primeiras páginas contrastando com seu tom fantástico, mas no uso de cores do artista. Mesmo assim, a Terra do Nunca de Loisel é tão perigosa quanto sua Londres.
A bela arte estilizada do autor dosa bem a sensualidade e a crueza. Versátil, ele tanto ilustrou material erótico, no final dos anos 1980, quanto trabalhou para os estúdios Disney em produções como Mulan (1998) e Atlantis – O reino perdido (2001).
Nemo mantém o nível de qualidade no seu catálogo. A edição tem capa dura, formato europeu (24 x 32 cm), papel couché e boa impressão. O que poderia acrescentar ao volume seria uma introdução contextualizando a obra ou apresentando o seu autor, mais conhecido por aqui pela série Em busca do pássaro do tempo (publicada no Brasil pela Martins Fontes), com roteiro de Le Tendre.
De certa forma remediando a ausência, a editora mantém um hotsite da série na internet com um preview, descrição de personagens, ficha do autor e wallpapers.


Título: Peter Pan – Volume 1
Editora: Nemo – Série em três volumes
Autor: Régis Loisel (roteiro e arte) 
Número de páginas: 112
Preço: R$ 69,00


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                            (Publicado originalmente no site Universo HQ no dia 21 de fevereiro de 2014)

Wednesday, April 2, 2014

Remy, de Diogo Bercito e Julia Bax


Por Audaci Jr

A história de um garoto de 17 anos que convive com a bronquite por toda sua vida, e resolve confrontar sua doença – com um resultado inesperado envolvendo um gato falante e um javali apodrecido.
Remy é um garoto que vive uma batalha travada no seu próprio corpo com a bronquite. Logo no começo do álbum, o leitor o vê subir uma ladeira com uma respiração curta, difícil e ofegante, mostrada por meio de enfáticos balões recheados com ofegos chiantes, tosse e a sensação de constrição.
Não é difícil imaginar que tal cena acontecia com o jornalista Diogo Bercito, que passou a infância e adolescência segurando um inalador em uma mão e um gibi do Homem-Aranha na outra.
Com base em uma história curta das reminiscências asmáticas de Bercito, Remy é um álbum independente de contornos metafóricos e surreais que povoavam a cabeça do mesmo imaginário no qual, ao mesmo tempo em que se acompanhava um escalador de paredes em Manhattan, poderia sentir contrações espasmódicas dos brônquios causados pelo chiado de um gato entranhado nos pulmões do autor, uma metáfora que sua mãe usava para acalmá-lo durante as crises.
Retratado com um aspecto bem peculiar – sempre pálido e meio azulado, como se estivesse sufocado – o protagonista com um ar meio Família Addams sente seu corpo como um empecilho para uma eventual felicidade.
Quando um exausto Remy morre (e não é uma “grande revelação” aqui, pois faz parte da história), ele materializa seu “inimigo” regurgitando o gato que reduzia seus sonhos de uma vida normal como qualquer adolescente.
A partir daí, ambos travam discussões em tom filosófico (sem grandes surpresas ou clímax, mas com certa elegância) a respeito da curta experiência da vida, da morte e de seus caminhos cheios de obstáculos.
Lançado no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo HorizonteRemy conta com o virtuosismo do traço de Julia Bax (com a assistência de cor de Lívia Constante).
Sua bela arte molda todos os percalços asmáticos do personagem com muita dinamicidade e fluidez cinematográfica, mesmo esquecendo pequenos (e importantes) detalhes uma página após Sandra, a empregada da casa, amarrar uma fitinha de promessas no pulso de Remy (algo contornado depois disso).
A publicação pelos selos autorais Dead Hamster e Suricatinho (premiado pelo Programa de Ação Cultural de São Paulo, o ProAC, em 2012) tem um competente trabalho editorial, com direito a uma capa cartonada sem orelhas, com aplique de verniz, papel couché de boa gramatura e excelente impressão.
Remy é uma fábula sobre confrontos, aceitação e a sua busca por soluções, mesmo sem se tocar que, às vezes, o problema é a própria chave.
Se a vida é uma possibilidade infinita e todos os caminhos levam ao mesmo lugar, o que Remy procura – Paz? Felicidade? Liberdade? – está onde sempre esteve: dentro de si.


Título: Remy
Autores: Diogo Bercito (roteiro) e Julia Bax (desenhos).
Editora: Dead Hamster / Suricatinho – Edição especial
Número de páginas: 56
Preço: R$ 25,00



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                            (Publicado originalmente no site Universo HQ no dia 13 de dezembro de 2013)

Tuesday, April 1, 2014

Tetralogia Monstro, de Enki Bilal





Nike, Leyla e Amir são órfãos nascidos sob as bombas do cerco a Sarajevo durante a guerra no início da década de 1990 nos Bálcãs.
Mais de 30 anos depois, dotado de uma memória impecável, as lembranças de Nike o conduzem, em um mundo futurista cheio de outros conflitos e conspirações, a um reencontro entre os três.
A memória sabe de mim mais que eu”, já dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Os traumas de um conflito podem enraizar, criar galhos e dar frutos em vários âmbitos pessoais, incluindo a índole artística de alguém.
Filho de uma eslovaca com um bósnio, Enki Bilal previu, no final dos anos 1990, que a primeira década do Século 21 ficaria à sombra do terrorismo internacional. Sinistras alusões que fazem de Tetralogia Monstro uma obra bastante próxima da nossa realidade.
Mesmo sendo uma ficção científica, as HQs do autor de origem iugoslava radicado na França têm como marca registrada a crítica social e política, fazendo de suas páginas um reflexo “perverso” do mundo.
Os órfãos Nike, Leyla e Amir, nascidos nas entranhas da guerra de Sarajevo, em meio a gritos e contrações explosivas das bombas que assolavam a região, conduzem a narrativa sobre a memória e reencontros, dividida em quatro capítulos: O sono do Monstro (produzida em 1998),32 de Dezembro (2003), Encontro em Paris e Quatro? (essas duas juntadas em um só capítulo, a pedido do autor e produzidas nos anos de 2006 e 2007, respectivamente).
Nike Hatzfeld, o mais velho, paradoxalmente é um “especialista em memória que não se interessa pelo passado”. Achado ao lado de um combatente morto por um sniper que calçava a marca famosa de tênis esportivo, e encontrado por um jornalista francês de nome Hatzfeld, ele tem a notável habilidade de rememorar detalhadamente tudo que viveu e apresenta ao leitor os seus primeiros dias. 
Interssante notar como é tênue a linha que Bilal traça entre mundos. Além de colocar (e cutucar) a industrialização capitalista com uma marca de calçado, ele faz reverência a personagens reais. O sobrenome do protagonista pegou emprestado do correspondente de guerra do Libération (jornal que também é citado na Trilogia Nikopol, também lançada pela Nemo), Jean Hatzfeld, nascido em Madagascar e radicado na França, como o quadrinhista. Dentre seus livros, publicou L’air de la guerre (1994), sobre o conflito nos Bálcãs.
No hospital de Kosevo, sob o céu de Sarajevo que é vislumbrado devido a uma bomba que escancarou o teto do local, juntam-se a Nike, dias depois, Amir e Leyla, a caçula. Dezoito dias depois de seu nascimento, ele jura proteger os dois “irmãos”.
Não é só na narrativa textual que é percebido o tormento dos personagens. O clima pesado, lúgubre e deprimente é sentido nas detalhadas paisagens e nos cenários montados por meio das igualmente pesadas e sempre reconhecíveis pinceladas do autor.
Os ecos de outros conflitos mais antigos, como a Segunda Guerra Mundial, são mostrados na arquitetura da sua infância em Belgrado, por exemplo. Vale lembrar que foi em Sarajevo que se deu o assassinato de Francisco Ferdinando, estopim da Primeira Guerra Mundial.
Na trajetória de encontros e desencontros dos três personagens, Bilal coloca conspirações arquitetadas por uma máfia integralista, viagens espaciais, uma polícia ostensiva e de formação brutal, animais do tamanho da palma de uma mão e vilões como Warhole, que pode dividir com a humanidade o título de “monstro” da tetralogia.
A crítica sempre está presente nas entrelinhas do álbum, seja nos mafiosos que desejam acelerar a morte de tudo que se relaciona à memória, ciência e cultura, seja nas entidades religiosas que vão presenciar uma escavação secreta ou quando Nike é indagado, mais de uma vez, se ele é de origem sérvia, croata ou mulçumana.
Outra análise visceral de Enki Bilal em Tetralogia Monstro é a respeito da própria arte, que não deve ser separada do que acontece no mundo. A síntese pode ser vista na epígrafe que o autor coloca no segundo capítulo:
Um alemão pergunta a Picasso diante da Guernica.
- Foi você que fez isso?
- Não. Foram vocês.
Às vezes, Bilal mistura as críticas como o inventivo “convite nuclear light” que Warhole entrega a Nike e sua amante para uma intervenção artística interativa e sangrenta. Outra criação artística do vilão é uma nuvem negra, cuja chuva resulta nas lágrimas da decomposição de dois mil soldados e civis mortos no “campo da estupidez”.
Prende a atenção também o intrincado jogo com os personagens envoltos em acontecimentos misteriosos como o 32 de Dezembro, moscas manipuladoras e várias réplicas não reveladas.
Como visto em outros trabalhos do autor, novamente é utilizado o artifício de se aproveitar de fragmentos de jornais, revistas e mensagens para contextualizar a narrativa da história.
Novamente, a Nemo prova que é uma das melhores editoras do mercado nacional. Com uma qualidade que já é praxe, a versão nacional tem formato europeu (24 x 32 cm) em capa dura, ótima impressão em um papel couché de alta gramatura.
O que carecia nas outras obras de Bilal lançadas pela Nemo, a Trilogia Nikopol e Animal’Z, um texto introdutório para enfatizar a importância do quadrinhista e do seu trabalho, é atenuado com um breve posfácio do autor falando por que escolheu o sobrenome de Jean Hatzfeld para Nike e um texto do próprio jornalista sobre coincidências da ficção e realidade.
“Os repórteres afirmam que a realidade supera a ficção; os escritores defendem o contrário. As guerras mostram que ficção e realidade se ultrapassam alternadamente, mas caminham juntas”, finaliza Hatzfeld.
Complementam o volume esboços do artista e um glossário seletivo.
Assim como “a memória é uma vasta ferida”, como já dizia Chico Buarque de Hollanda, a guerra acorda o “monstro”, como chega a ser definido na história em quadrinhos.





Título: Tetralogia Monstro

Editora: Nemo – Edição especial
Autores: Enki Bilal (roteiro e arte) 
Número de páginas: 272 - Capa Dura

Formato: 24 x 32cm
Preço: R$ 84,00


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                            (Publicado originalmente no site Universo HQ no dia 07 de fevereiro de 2014)

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